A Lenda de Billie Jean e o rompimento das leis na busca pela justiça
Nos anos 80, vimos a moda das
produções adolescentes ganharem forma. Filmes, séries, músicas e desenhos
apostaram nesse filão.
No cinema, tivemos tantas
produções nesse estilo que fica difícil fazer alguma contagem, mas podemos
apontar alguns destaques, tanto nos quesitos artísticos como "Negócio
arriscado" ou "Vidas sem rumo", quanto nos quesitos de
entretenimento, como em "Curtindo a vida adoidado" ou "O clube
dos cinco". Mas esses filmes foram filmes que fizeram sucesso nos cinemas,
e mais ainda quando exibidos na televisão ou quando foram lançados nas
locadoras de fitas.
Porém, alguns filmes passaram
quase despercebidos pelo público na ocasião de seus lançamentos, mas que
ficaram na lembrança daqueles (de nós) que os assistiram nas sessões
televisivas que costumavam ser exibidas à tarde, como a nossa famosa
"Sessão da Tarde" ou o "Cinema em casa (este começou a passar à
noite, mas depois de um tempo, começou a ser um programa vespertino do
SBT)". Cito alguns desses filmes: "Te pego lá fora", "Tuff
Turf - o rebelde", "Admiradora Secreta", "Cuidado com meu
guarda-costas" etc. Mas existe um filme que eu, particularmente, assisti
quando tinha uns dez ou onze anos na já citada Sessão da Tarde e gostava
demais. Era "A Lenda de Billie Jean".
Muitos desses filmes tinham
como pano de fundo o sofrimento de jovens marginalizados ou segregados por
condições particulares, como os nerds, lutando contra algo ou alguém que lhes
feria o seu direito. Nesse caso, temos a história de Billie Jean (Helen
Slater), uma adolescente bonita, desejada secretamente pelo valentão da cidade,
e que tinha um irmão menor, Binx, que era nerd, interpretado por um Christian
Slater quase de fraldas. O tal valentão se chamava Hubie Pyatt (Barry Tubb), e
era filho de um homem rico, o Sr. Pyatt, respeitado, de conduta aparentemente
"ilibada", um típico cidadão de bem.
Pois bem, em certa ocasião,
Hubie, querendo demonstrar força sobre aqueles que teimam em enfrentá-lo,
quebra a moto do irmão de Billie Jean, mas não sem antes aplicar aquela surra
no nerd. Billie Jean vai até o pai do valentão cobrar algum tipo de compensação
pelos estragos, mas lá, ela tem a ingrata surpresa de descobrir que o Sr. Pyatt
não era assim tão diferente do filho, ou seja, um babacão, pai do babaquinha. O
abjeto cidadão de bem tenta abusar sexualmente de Billie Jean, porém, seu irmão
entra em cena e pega uma arma pertencente ao próprio Sr. Pyatt e o atinge com
um tiro. Nesse momento, chegam o filho do idiota e alguns transeuntes. No
desespero, os irmãos fogem. Juntam-se a eles duas garotas, uma delas, Putter
(Yeardley Smith), foge com os amigos porque era constantemente agredida pela
mãe e está cansada de viver naquela situação.
O Sr. Pyatt e seu filho acusam
os jovens de tentativa de roubo e ameaça, e os tornam caçados pela polícia.
Logo, a situação se torna frequente nos noticiários locais e Billie Jean e sua
pequena gangue se tornam conhecidos por todo o estado do Texas. No entanto, a
pretensão do Sr. Pyatt de desqualificar a conduta de Billie Jean sai pela
culatra, e esta começa a ser vista como uma heroína pelos jovens da pequena
cidade e seus arredores. Não só como uma heroína, mas como um símbolo de luta
contra o sistema e os opressores.
Se aproveitando dessa imagem,
Billie Jean se torna uma espécie de Joanna D'arc-Punk-Oitentista, cortando seus
cabelos e guiando os jovens a uma luta contra todo tipo de injustiça, seja ela
vinda do sistema ou dos pais.
Olhando esse resumo, parece
uma história profunda e cheia de reflexões. Bem, não chega a ser uma obra de
muita profundidade, pois as resoluções são simplistas e fáceis, mas é um filme
divertido e que, sim, dá margem a algumas boas reflexões.
Billie Jean era uma
adolescente cheia de sonhos e que amava a família. Tinha respeito pela mãe e
pelo irmão, o sensível Binx. E que viu em todo esse caos sua vida virando do
avesso. Mas que não deixou de lado sua busca pela justiça e nem se tornou
vítima. Conclamou aos jovens a luta contra aquilo que os oprimia, mas tudo
isso, ela o fez agindo como uma delinquente.
Afinal, o que podemos fazer
na busca por um mundo mais justo, principalmente quando o que somos é fruto da
injustiça perpetrada pelo sistema? Até que ponto podemos ir?
Conhecemos, em menor ou maior
grau, muitos casos em que algo nos pareceu injusto. Mas o que é justiça? Uma
coisa que pra nós possa parecer injusto, para outra pessoa pode ser muito
justo.
Todos nós somos um pouco
juízes de tudo. Devemos medir os acontecimentos ao nosso redor, mas geralmente
utilizamos a paixão ao invés da razão, o que não torna o nosso julgamento tão
justo assim. Imagine a seguinte situação: você vê na televisão que um homem
levou um tiro, numa suposta tentativa de assalto. Os envolvidos no crime são
uma moça e seu irmão, pessoas pobres e sem qualquer reconhecimento por parte da
sociedade em que você vive. A suposta vítima é um homem reconhecido por você,
um rico comerciante cuja vida, aparentemente, nunca fora manchada por qualquer
acusação de crime. Que frequenta a igreja e que visita os amigos no fim de
semana. A quem você tem a tendência a dar crédito? É algo que o filme expõe.
Essas questões são colocadas de forma a se construir uma narrativa dantesca na
qual a protagonista sofre os preconceitos por ser uma adolescente bonita e que
cometeu, supostamente, um ato de delinquência.
Sobre o conceito de justiça,
muitos juristas consideram, atualmente, um conceito amplo, que parte da suposta
busca pela igualdade nas relações sociais. Muitas civilizações consideravam a
justiça como o alcance dos princípios baseados nos seus hábitos. Ou seja, cada
povo tem sua própria forma de justiça, mas à medida que a humanidade vai se
tornando cada vez mais globalizada, tende-se a se adotar um modelo universal de
justiça.
Para alguns povos, o simples
fato de uma mulher praticar o adultério é caso para uma pena de morte. Em
outros locais, ladrões têm as mãos decepadas. Mas as barbaridades perpetradas
durante os tempos nos levam a nos ensinar sobre a evolução humana. Mas o que
fazemos para adotar uma justiça imparcial? O filme mostra que outros jovens
adotam a postura de Billie Jean como uma guerreira libertadora apenas porque veem
nela uma integridade e honestidade que as pessoas mais velhas, geralmente
cidadãos de bem e conservadores da cidade, não veem. Sendo assim, é difícil
adotar a justiça quando o que se tem é uma conjectura: uma moça pedindo
reparação de danos a um homem, e esse homem que, após tentar abusar dessa
garota, algo que ninguém, a não ser ela e o irmão, presenciou, levou um tiro do
irmão da moça.
Sendo assim, a construção que
se faz, dentro da sociedade mostrada no filme, é de que, na verdade, a vítima é
o Sr. Pyatt, mas por que ele se tornou vítima? Ele tenta abusar da moça que foi
buscar uma reparação dos danos causados por seu filho. É atingido por um tiro
disparado por sua própria arma, mas estava sozinho com os adolescentes quando
isso ocorreu. Então, qual a narrativa? Existem duas visões: a de uma menina e
seus amigos e irmão, pobres, sem muita notoriedade dentro da sociedade em que
vivem, e a de um jovem e seu pai, ricos, atingidos pela fúria dessa menina.
Por serem julgados já
culpados, devido a todos os fatores previamente estabelecidos, resta a esses
adolescentes adotar uma postura transgressora. Isso ocorre em muitos casos de
aparente injustiça contra certos grupos, como os negros nos Estados Unidos
quando decidiram estudar nas mesmas escolas dos brancos ou sentar nos mesmos
assentos nos ônibus, cometendo, assim, transgressões na época. Ou seja, a busca
pela justiça é cheia de leis sendo quebradas. Os legalistas, pura e
simplesmente, não se curvam à justiça, pois nem sempre as leis definem o que é
justo, vide os países-colônias, que romperam com suas metrópoles ao custo de
muita luta e sangue, como nos Estados Unidos, onde Thomas Jefferson foi
considerado um bandido pela coroa inglesa, e esse julgamento foi o mesmo
adotado pelos legalistas das colônias americanas, que seguiam fielmente a
justiça inglesa. Ou seja, a construção dos Estados Unidos, ou mesmo do Brasil,
se deu com a quebra das leis vigentes, com a transgressão.
Outros filmes retratam a
busca por uma justiça que se mostra viciada. Em “O Nome do Pai”, um jovem tenta
provar sua inocência em um caso de atentado em um tribunal abarrotado de homens
que o enxergam apenas como um delinquente, faça ele o que fizer. Essa é uma
história real ocorrida na Irlanda.
Outro bom filme que mostra a
busca por uma justiça deturpada desde o núcleo é “Glória feita de sangue”, um
dos filmes mais tocantes de Stanley Kubrick. Nele, três soldados são condenados
à corte marcial após um ataque do exército francês terminar de forma
desastrosa. No entanto, esse três soldados são escolhidos não por terem alguma
culpa na derrota no front, mas por simbolizarem o poder da justiça francesa.
Eles são escolhidos aleatoriamente, e não têm escolha a não ser seguir o seu
destino. O desespero dos soldados durante a execução de suas penas é de fazer
tremer.
Muitas vezes, a justiça
parece estar sendo feita apenas para nos vendar a vista para acontecimentos
mais escusos, e muitas vezes, a via de transgressão das leis é uma escolha
muito mais acertada que seguir as regras. Mas como saber quando devemos seguir
ou não as regras? Buscar sempre o Estado Democrático do Direito é um dos
primeiros caminhos, mas essa é uma questão complexa, que muitos nunca
entenderão, vide a vista grossa que as pessoas fazem diante das arbitrariedades
que se prostram o tempo todo à nossa frente.
Um abraço e até a próxima.
Roberto Dias.
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