Succession - como aprendemos a amar pessoas tão detestáveis (com muitos spoilers)

 Narrativas. Tudo se trata da narrativa. E isso move nossa paixão por uma das melhores séries de todos os tempos - sim, ela está no mesmo patamar de obras-primas como "Breaking Bad", "The Sopranos", "Sons of Anarchy" e outras poucas - e a criação de Jesse Armstrong não decepciona.

Quando você começa a ver Succession, chega a ficar mal por estar acompanhando o ponto de vista de pessoas tão ricas e mesquinhas, e chega a se perguntar: "Por que diabos eu tô vendo isso?". Freud talvez não explique.

A série se trata de um "Game of Thrones" dos tempos modernos, onde o trono é um conglomerado de comunicação multibilionário, a Waystar Royco, que é tipo a Disney misturada com a CNN, cujo dono e CEO da parada, Logan Roy, o sempre brilhante Brian Cox, da franquia dos X-Men, encontra-se rodeado dos mais tenebrosos e ambiciosos puxa-sacos de que se tem notícia, e também de pessoas sempre dispostas a tomar o seu lugar em seu reinado, dentre estes, seus filhos Kendall Roy (Jeremy Strong), o mais ambicioso de todos, Siobhan "Shiv" Roy (Sarah Snook, perfeita), Romulus "Roman" Roy (Kieran Culkin) e o sempre excluído Connor Roy (Alan Ruck, o eterno Cameron de "Curtindo a vida adoidado"). Após um incidente que deixa Logan à beira da morte, Kendall começa a se preparar para ocupar o lugar do pai como CEO das empresas, maquinando traições, elaborando projetos para a sua designação como o "rei" de todo aquele império, porém, seus irmãos não veem isso com bons olhos, e a coisa começa a degringolar.

Os personagens. 

Logan Roy é o dono de um império que ele construiu à base de bons contatos políticos e de uma inquebrável visão corporativa. Ele é impetuoso e destemido, sua presença é tão marcante que até mesmo quando sai de cena parece moldar os acontecimentos da série. Seu "amor", por assim dizer, pelos filhos, vem na forma de desdém, de uma odiosa capacidade que ele tem de fazê-los menores, por enxergar eles não só como filhos, mas como concorrentes. Claro, isso não se aplica ao filho mais velho, Connor, por motivos que explicarei mais a frente. Logan é dotado de tanto poder que em certa cena ele faz seus funcionários se comportarem como animais famintos. Com um pai assim, não é impossível imaginar como os filhos seriam.

Kendall é o nosso condutor nessa história, pois é do seu ponto de vista que olhamos tudo aquilo. Inicialmente cheio de boas ideias e boas intenções, das quais o inferno tá lotadaço, o cara exala uma confiança que só os filhinhos de papai e herdeiros de grandes riquezas devem ter. Arrogante em muitas ocasiões, um babaca em tantas outras, aprendemos que ali também existe um ser humano, que foi criado dentro de um ambiente que inclui um pai ausente como figura paterna, uma mãe que pouco se importou com os filhos, irmãos carentes de sentimentos básicos do ser humano e fartos de todas as riquezas materiais que o dinheiro pode comprar. É, a felicidade talvez seja o antônimo da frustração, porque vemos ali pessoas ricas, que sorriem o tempo todo, mas que, no fundo, são frustradas e tristes. E Kendall, como nosso condutor, é o responsável por nos colocar naquele mundo. Talvez por isso nos pegamos torcendo por ele em muitas ocasiões. Ficamos tristes com ele. E sorrimos quando ele sorri.

Nesse jogo de gato e ratos, muitos ratos, temos um caleidoscópio interessante de personagens tão detestáveis quanto os cinco principais, entre eles Tom Wanbsgans (Matthew McFadien, o Mr. Darcy da versão cinematográfica de "Orgulho e Preconceito"), o genro de Logan, marido de Shiv Roy e sempre disposto a se submeter às maiores humilhações só pra ter uma posição melhor na empresa da família. Temos também o Greg (Nicholas Braun), sobrinho de Logan e saco de pancadas habitual de Tom. Bem, na verdade, os dois tem uma conexão mais complexa, quase como se fossem pupilo e um mestre sem muita sabedoria, mas que acha que sabe de tudo, e talvez soubesse mesmo.

Na superfície, temos uma série que fala basicamente sobre quem vai poder substituir o pai na cadeira de chefe, porém, mais a fundo, temos um estudo sobre as características de pessoas que estão socialmente deslocadas da realidade da grande maioria de nós, tentando sobreviver dentro daquele pequeno mundinho, sabe, aquele mundinho do qual pertence o mítico 1%. E quando eu digo "sobreviver", não é bem a nossa forma de sobrevivência, mas algo entre ser um rei e ser "somente" um bilionário. Mas não é só isso. Algo é fascinante em termos narrativos, e por isso é tão difícil largar a série quando você se habitua com aquelas personalidades tão cruéis e tão distantes da maioria.

Um dos melhores personagens da série é o filho mais novo, Roman Roy. Dono de uma personalidade irritante, nojenta, e por vezes até engraçada, em quase todos os momentos, talvez ele seja o mais honesto dos irmãos em reagir a seus sentimentos, pelo menos àqueles que estão na sua superfície, pois vemos um garoto mimado, um playboy, que tem profundas marcas psicológicas que vão sendo desvendadas à medida que a série vai caminhando. É o personagem que mais quer se parecer com o pai, porém, encontra-se longe disso, e talvez por isso, seu mecanismo de defesa está em jogos sexuais perturbadores, com os fetiches mais esquisitos que se pode imaginar, e no prazer que sente em humilhar qualquer pessoa ao seu redor, fazendo piadinhas horríveis o tempo inteiro. Nutre um medo profundo de seu pai, mas aos poucos vemos que esse medo nada mais é que o amor que ele busca no velho Logan.

Shiv é a mulher no meio de um mundo que parece não ter sido construído pra ela (alguma mulher se sente assim?). É sempre desprezada e encarada como aquela que não está preparada pra assumir os negócios da família, e ninguém dá um motivo pra isso, a não ser o fato de ela ser uma mulher jovem. Com isso, ela tenta colocar seu marido, Tom, na mais alta posição que pode, ao mesmo tempo em que o trai e muitas vezes ignora os sentimentos dele. Sua personalidade inclui ser simpática quando quer algo e arrogante quando sabe que sua atitude não a afetaria de volta. No entanto, a sua percepção das coisas a faz se tornar uma pária dentro da própria família, a chamada "ovelha negra". Com isso, ela tenta se ver como alguém mais útil, se aliando a adversários políticos de seu pai, tentando fazer seu próprio caminho, mas a série nos leva a perceber que a forma como foi moldada e sua visão das coisas não a deixam ter força para chegar onde quer chegar, talvez a mais trágica das visões para uma mulher moderna: a eterna filha do chefe, ou esposa. 

Connor é o irmão mais velho. Filho do primeiro casamento de Logan, Connor é sempre deixado de lado quando se trata de decidir qualquer rumo para a empresa da família. E aqui eu vou viajar um pouco na maionese: eu vejo o Connor como uma continuação de outro personagem vivido pelo mesmo ator, o que eu citei ali no terceiro parágrafo, o Cameron, de "Curtindo a vida adoidado". Com certeza o Cameron era o filho de um homem que já não se importava com a sua família, estava mais ligado aos bens que possuía, no caso do filme oitentista, a Ferrari usada nas peripécias do amigo Ferris Bueller. Assim como o Cameron, o Connor guarda profundas dores pelo pai, por não conseguir ser aquilo que ele, o pai, quer que seja, pois, na série, Connor não tem as mesmas ambições dos outros irmãos, pelo menos não da forma predatória deles, e isso o faz ser como o patinho feio da família, o cara que tem grandes sonhos e que de forma alguma se alinham aos caminhos da empresa ou mesmo aos moldes do pai. Este o acha fraco e não tem intenção nenhuma de deixar o filho mais velho se apropriar do que quer que seja da empresa, e isso é passado aos irmãos, que o veem apenas como um homem envelhecido sem pulso até mesmo pra manter seu casamento de fachada. Por isso, Logan demonstra um pouco mais de "carinho", mais parecendo pena de Connor, por saber que este nunca chegaria a seus pés e nunca seria um concorrente a dono de sua empresa.

Os rumos da história

Aqui eu vou entrar nos spoilers da última temporada.

Ao nos colocar na pele dos personagens, a série nos leva a conhecer como aquele mundo, que à primeira vista nos parece tão limpo e um objetivo a se buscar, é na verdade um caminho de guerra eterna e de sujeiras.

Imagine que você tenha apenas um caminho a seguir. E tudo o que você faz na vida é se preparar pra seguir esse caminho. E se de repente as pessoas mais próximas de você lhe dissessem que você não é bom o bastante pra esse caminho? Não só lhe dissessem isso, mas fizessem o possível pra te deixar fora desse caminho? O que você faria? Pensando dessa maneira, é mais fácil entender os pensamentos e sentimentos de Kendall Roy. Ele é o homem que nunca cresceu emocionalmente (isso também pode se aplicar a Roman Roy), por isso seus rompantes de brilhantismo davam lugar com frequência a uma personalidade tóxica em todos os sentidos, com os filhos, com a ex-esposa, com os irmãos e, principalmente, com o pai. E muitas vezes até consigo mesmo. Sua personalidade não é só sua ambição pelo poder de seu pai. Ela é autodestrutiva, e isso faz com que haja conexão entre esse personagem com o público, pois ele é contumaz em falhar nos seus objetivos. Sim. Não só ele, como os demais irmãos, principalmente na última temporada, onde temos episódios dedicados a cada um deles, e na qual temos um dos melhores episódios de todos os tempos em séries. Ali, vemos um pouco do que falta na família: amor. Mesmo que pela dor. A série, no último episódio, nos dá o momento mais doce de todo o programa pra em seguida nos quebrar, não pelo ódio, mas por cenas que demonstram o quanto o desequilíbrio familiar pode afetar todos da maneira mais negativa possível, seja de uma família comum, seja de ricaços de Nova Iorque. Ali também temos uma das melhores falas, proferidas por um personagem que em todos os momentos demonstrou ser desprezível em todos os sentidos, simplesmente por ser a mais sincera fala de todas. Roman diz a Kendall: "Você é uma piada. Eu sou uma piada, a Shiv é uma piada. Não somos nada.". É isso o que sobra de uma família que nunca entregou nada além de dinheiro e poder. E ele fala de uma forma cansada. Ele é rico, e sabe que isso não vai mudar, não importa quem se senta no trono. Pra ele, o que importa àquela altura é apenas seguir com a vida, assim como vemos em sua última cena, quando ele entra em um bar e toma um drink caro, com um leve, bem leve, sorriso no rosto.

Quanto à Shiv, bem, ela, que sempre foi tratada como um ser humano inferior pelo pai, se torna aquilo que ela foi levada a se tornar. A mulher do chefe. Mas eu penso que, mais do que isso, ela é a pessoa mais dotada de amor pelos irmãos, pois é dela a decisão final de os libertar das amarras criadas pelo pai. Mesmo assim, ela se força, até por sua criação, a se submeter ao relacionamento tóxico com o marido. Em sua cena final, Shiv coloca sua mão sobre a mão de Tom, dentro do carro. Ali, vemos os dois se entregando um ao outro, mas não só isso. O carro, sempre luxuoso e espaçoso, aparece ali como um caixão com os dois lá dentro. Shiv e Tom. Sempre se machucando. E agora juntos, e o take dentro do carro indica como estão desconfortáveis, pois vemos ali o carro ligeiramente mais apertado do que o normal. Triste, mas extremamente coerente com a história dos dois.

Kendall termina sua história em aberto. Completamente quebrado. Eu imagino que Kendall seja um escravo de sua condição. Do homem a quem foi prometido o poder desde criança, mas cujo poder lhe foi tomado (ou nunca lhe foi dado). Ele é liberto, mas tal como muitas pessoas que passaram a maior parte da vida presas, ele parece não saber o que fazer com sua liberdade. Seria pra ele o fim de tudo? Ao fim, me resta pensar que o pôr do sol no final do episódio seja o ciclo de Kendall terminando, para o bem ou para o mal. Rico ele sempre vai ser, mas vai continuar sendo um "nada", como disse Roman? Não sei.

E é isso. A narrativa nos conduz. Nos dá o caminho do personagem. E quem sabe criar a narrativa, tem que saber como nos colocar na pele daqueles a quem passamos a acompanhar e tentar não nos tirar dali. Sejam eles super-heróis com poderes que podem salvar o mundo, como em "Os Vingadores", sejam eles assaltantes de banco, como em filmes como "Fogo contra fogo", sejam eles pessoas desprezíveis que sempre tiveram tudo em muita quantidade, mas amor, afeto sincero, talvez só um pouco, e talvez, nem isso e, nossa, como isso é doloroso.

Um grande abraço e até a próxima!

Roberto Dias

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