Olhos que condenam: você acredita na justiça?
No antigo show da Globo,
Casseta e Planeta, eu lembro de uma esquete que contava a seguinte anedota: um
repórter traz policiais de três países, os Estados Unidos, a Inglaterra e o Brasil.
Ele diz aos policiais que irá soltar um coelhinho no meio da mata e
contabilizar o tempo que os policiais de cada país irá levar para encontrar o
coelhinho. Soltou o primeiro coelhinho e os policiais americanos foram à sua
caça. Tipo filme de ação, entrando com aquele jeito que a gente está acostumado
a ver naqueles filmes. Corta para os homens trazendo o coelhinho. O repórter
olhava para o relógio e dizia: “Nossa! Admirável. Vocês levaram apenas duas
horas e quinze minutos para achar o coelhinho. Agora vamos ver a eficiência da
polícia inglesa”, aí soltavam o coelhinho na mata novamente. A polícia inglesa
tinha aquele estilo de detetive Sherlock Holmes, um cachimbo, uma lupa e aquele
chapéu engraçado. Adentraram a floresta e logo corta para o retorno deles. O repórter
diz: “Uau! É incrível. Vocês levaram apenas uma hora e meia pra achar o
coelhinho”, e prosseguia, “Agora veremos a eficiência de nossa querida polícia
militar de Diadema (naquela época, a polícia de Diadema estava sob o julgo das
pessoas por conta de uma reportagem que mostrava a truculência dos policiais
durante uma blitz na Favela Naval).” O repórter soltava o coelhinho, depois
cortava para o retorno dos policiais, mas a câmera focava apenas em um dos
policiais e no repórter, enquanto este dizia algo do tipo: “Vocês são muito
bons mesmo. Levaram apenas dez minutos pra encontrar o coelhinho. Dá ele
aqui.”, Aí o policial, meio malandro, gritava: “Soldado, traz o coelhinho”, daí
um outro policial saía da mata com um homem todo cheio de hematomas vestido de
coelho. O repórter olhava pra ele e dizia, “Mas, amigos, isso não é um
coelhinho...”, no que o homem vestido de coelhinho gritava desesperado, “Eu
sou, sim. Sou um coelhinho, um bezerrinho, uma vaquinha, sou o que vocês
quiserem.”.
O sistema judicial funciona
de acordo com uma cadeia de ações, que começa com a investigação após uma
queixa ou uma suspeita de um crime, depois temos o processo judicial, que
envolve juntadas de provas e outros elementos que possam corroborar a queixa ou
as suspeitas, ou não. Os acusadores e defensores devem agir conforme seu melhor
entendimento. Depois disso, há o julgamento, onde um juiz, ou um tribunal, que
deve ser totalmente isento, analisa esses elementos ou provas, e julga da
melhor maneira possível. Se um desses elos nessa cadeia é quebrado, temos o que
podemos chamar de injustiça. Se um juiz vê o réu como culpado desde o primeiro
momento, não adianta juntar as mais variadas formas de provas que indicam a sua
inocência, o juiz vai condenar o réu com poucas ou nenhuma prova. Se a polícia
enxerga um suspeito como criminoso, ela vai tentar arrancar dele, à força,
através de métodos muitas vezes desumanos, uma confissão. Um juiz tem que ser
imparcial e isento durante um julgamento. A polícia deve ser imparcial e isenta
durante a investigação, assim como o Ministério Público, que é responsável por
investigar crimes que atentem contra os direitos da população, geralmente
cometidos por agentes públicos.
Não é incomum assistirmos
filmes ou séries que falam sobre casos de injustiça. Alguns bons filmes
ficcionais como “Um sonho de liberdade” e “À espera de um milagre” tratam o
tema de forma lúdica, outros como “Glória feita de sangue” mostra como a
injustiça pode ser travestida de justiça para aplacar a fúria dos mais
poderosos. Mas temos obras que são verdadeiros socos no estômago,
principalmente por serem baseadas em histórias verídicas, como “Em nome do
Pai”, que mostra a trajetória dolorosa de um homem, preso injustamente, que
além de tentar provar a sua própria inocência, tenta tirar o pai da cadeia
quando ele foi preso por tentar ajudar o filho. E temos também essa nova
minissérie da Netflix, “Olhos que condenam”, que trata da história de cinco
jovens negros e latinos de Nova Iorque que foram presos acusados de cometer um
violento estupro contra uma corredora no Central Park.
Dirigido por Ava DuVernay,
dos ótimos “Selma” e “13ª Emenda”, e do horrível “Uma dobra no tempo”, a
história mostra o ponto de vista dos acusados, mas também foca nas manobras
feitas pela acusação para que a culpa recaia naqueles jovens, mesmo sabendo que
nada ligava os garotos ao crime. A minissérie é dividida em quatro episódios.
Os três primeiros têm uma duração de cerca de uma hora cada, e o último com
cerca de uma hora e meia.
Cada episódio dá um tom
dramático ao destino de cada um dos personagens, sendo que o primeiro episódio
dá um panorama geral dos acontecimentos até a sentença dos jovens, enquanto que
o segundo e terceiro episódios tratam do que aconteceu com os quatro rapazes
mais novos. O último episódio é quase um filme de prisão, que mostra o
sofrimento e a crueldade pelas quais passou o mais velho dos meninos. Mesmo nem
estando na cena do crime no momento em que este ocorreu, ele foi condenado como
se lá estivesse.
Quase sempre a diretora
mostra os personagens em plongé, talvez para mostrar uma certa grandiosidade na
história deles, mas em certos momentos, esse recurso é exagerado e apenas
estético. Porém, nada pode apagar o brilho e o correto tratamento dado à
história desses cinco condenados.
Contar uma história assim
traz à tona certos entendimentos sobre a questão do racismo institucionalizado,
e também nos força a discutir e debater esse tema. Pois não é raro o problema
que vemos em tela. Outros filmes muito bons trataram disso, como “Hurricane”,
com Denzel Washington no papel do famoso boxeador preso, acusado de
assassinato, e todos eles são ótimas experiências para nos colocar na pele
dessas pessoas injustiçadas.
DuVernay já mostrou como o
sistema prisional americano funciona como uma espécie de senhor da escravidão,
fornecendo mão de obra barata, quase de graça, a empresas e grandes corporações
no seu documentário “13ª Emenda”, e nesta minissérie, ela particulariza a
sensação de injustiça, nos colocando na pele dos cinco jovens.
Tendo o estereótipo certo
para serem acusados e condenados, Anton McCray, Kevin Richardson, Raymond
Santana, Yousef Salaam e Korey Wise tiveram suas vidas arrasadas por uma
multidão ávida por justiça a qualquer preço, por uma mídia acusatória e
sensacionalista, por um empresário megalomaníaco (que depois veio a se tornar
presidente dos Estados Unidos) que achava que eles deveriam ser mortos e por
uma polícia e promotoria racistas e preconceituosas. Todo o circo foi montado
para achar não suspeitos, mas pessoas condenáveis. E qual o tipo de pessoa mais
condenável do que jovens pobres negros e latinos que praticavam pequenos
delitos na rua no momento em que o grave crime contra Trisha Melli, a corredora
estuprada, ocorreu? Não teve outra. Mesmo com todas as evidências indo contra a
acusação, como horários que não batiam, o fato de não haver nenhum tipo de
vestígio nas vestimentas dos rapazes e até um teste de DNA do esperma
encontrado próximo à cena do crime que não batia com o DNA dos cinco garotos,
eles foram condenados. Foram condenados por uma polícia convencida de estar
bancando a instituição heroína, por uma promotora que, como a maioria dos
agentes que incorporam o sistema judicial, como juízes e membros do Ministério
Público, sofre de um ego inflado capaz de explodir o mundo, por um tribunal
abarrotado de pessoas que não veem as consequências de seus atos e, por isso,
não pensam duas vezes antes de mandar para a forca qualquer pessoa minimamente
suspeita (muito diferente daquele tribunal visto em “12 homens e uma sentença”),
e sem falar nas pessoas mais próximas dos cinco, como a madrasta de Raymond
Santana e o pai de Kevin Richardson (que, ao contrário do que é mostrado na
minissérie, nunca foi perdoado pelo filho), que fizeram pouco por esses rapazes
ou mesmo até atrapalharam o pouco que restou da dignidade que eles poderiam ter.
O olhar condescendente da
diretora sobre os cinco rapazes, em um primeiro momento, pode parecer exagerado
e nos levar a uma empatia forçada, pois somos levados para dentro da pele dos
acusados, mas DuVernay não aponta apenas os rapazes como as únicas vítimas, ela
mostra como o crime cometido contra Trisha foi grave, mostrando a mulher
entrando no tribunal e, mais adiante, mostrando de forma gráfica e quase
explícita o momento em que a mesma sofre a violência, o que gera no espectador
a revolta por aquele crime hediondo, tudo ocorrido numa Nova Iorque que passava
por um de seus períodos mais violentos, bem antes da política de “tolerância
zero” adotada por Rudolph Giulliani anos mais tarde. Porém, a sua intenção não
é mostrar as pessoas como vítimas, mas o sistema como um agressor,
principalmente quando se trata do tratamento dado às minorias. E esse intuito é
alcançado, principalmente no último episódio, que mostra o tempo passado na
prisão por Korey Wise, que foi agredido de todas as formas possíveis pela
injustiça que sofreu.
Para você, que vive em um
meio minimamente seguro, que acha que nunca poderá ser acusado(a) de um crime
que não cometeu, pode parecer apenas mais uma baboseira militante, ou apenas um
caso isolado. Sabemos que esse tipo de caso pode vir a ser diminuído devido às
pressões dos órgãos e pessoas que militam a favor dessas minorias,
principalmente por conta do maior acesso à informação que temos hoje, mas não
sejamos ingênuos de achar que esse é um caso isolado. Está longe de ser assim.
Quando vejo pessoas
compartilhando coisas como “não queremos consciência negra, mas consciência
humana”, penso no quanto ela não poderia estar mais errada. E reside aí o
problema desse tipo de pensamento. Humanizar é muito mais difícil que
desumanizar. Não é apenas uma ou duas vezes que vemos, na minissérie, a
promotora Linda Fairstein, vivida por Felicity Huffman, se dirigir aos supostos
agressores como animais que deveriam ser enjaulados. Em tempos atrás, negros
eram vistos como pessoas sem alma e dispostas a roubar tudo o que os brancos
tinham. Algum tempo atrás, um pastor em uma igreja no Brasil, numa ridícula
encenação, estava “tirando o demônio” do corpo de uma mulher. Em certo momento
dessa risível performance, o pastor pergunta ao “demônio” se ele seria de
esquerda ou de direita, no que a mulher, rindo muito e fazendo voz esganiçada,
responde: “sou de esquerda”. Sim, senhores e senhoras ou senhoritas, o demônio
tem um lado no espectro político, ele só não disse se era social-democrata,
marxista ou anarquista. Isso é uma clara manobra discursiva disfarçada para
desumanizar os setores progressistas dentro das igrejas, na intenção de criar,
nas cabeças dos fiéis, uma figura vilanesca demoníaca e, assim, tornar as
pessoas que pertençam a um setor mais à esquerda do espectro político mais
condenáveis, por assim dizer. Caso haja algum tipo de suspeição criminal, essas
pessoas de esquerda seriam condenadas facilmente e, assim, essa condenação
seria aceita pelos fiéis como correta e justa. Cria-se o vilão, e depois se
cria o combate a esse vilão. Narrativa simplista e perfeita para que pessoas de
mente fraca acreditem em qualquer coisa que se lhes impõem.
Tendo isso em vista, não
seria difícil condenar os cinco jovens que estavam no meio de um grupo que
praticava pequenos delitos numa cidade já muito ferida pelos altos índices de
criminalidade. Qualquer júri os condenaria, pois eles já não eram considerados
humanos (talvez, se fossem brancos e filhos de pessoas de classe mais alta,
seria muito mais difícil demonizá-los), e foi o que ocorreu. E é triste
perceber que a série, apesar de focar naqueles cinco rapazes, aponta algo muito
maior que isso, um sistema que, apesar de todos os esforços de militantes e
pessoas com uma verdadeira consciência humana, ainda peca pela desumanização,
por transformar pessoas em meros objetos para o capricho de promotores,
procuradores e juízes, que destroem qualquer um que ousar tentar ferir seus
orgulhos. Por isso, a despeito da anedota contada no programa da Globo e
descrita aqui no início deste texto, quando a justiça busca condenar por
condenar, apontando sua caneta para pessoas mais moralmente ou socialmente vulneráveis,
quem está de fora tende a ver apenas a casca e acreditar no que vê. Podemos
observar, também, que o Brasil sempre foi visto como inferior, até mesmo na
questão policial. Mas, ao assistirmos a obras como essa, percebemos que a
polícia de outros países também tem em suas mãos o sangue da injustiça, como
bem podemos notar no filme “Em nome do Pai”, no caso da polícia inglesa, e
nesta maravilhosa minissérie de Ava DuVernay, no caso da polícia americana.
Assim, aquele coelhinho do início deste texto, pode ser fabricado por qualquer
um que queira apenas mostrar um serviço, mesmo que mal feito, a uma população
ensandecida louca por sangue e por condenações arbitrárias, e por isso mesmo,
uma população cega por ódio.
Em tempo, a promotora do caso
nunca assumiu o erro cometido contra os cinco jovens condenados, algo típico ao
cargo que ela ocupava.
Abraços e até a próxima.
Roberto Dias
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