Subjetividade da arte e a censura



Esses dias rolaram pequenas polêmicas acerca de algumas manifestações artísticas pelo Brasil. A primeira delas da qual quero discorrer aqui diz respeito à atual novela das nove horas da Globo, “A Força do querer”, onde alguns personagens fogem dos chamados “bons costumes”, o que implica uma série de críticas, todas infundadas ou baseadas em questões moralistas ou éticas, sem aprofundamento teórico, tratando-se apenas da visão de pessoas que claramente não sabem o significado de qualquer colocação artística além daquelas que estão na superfície, isso sem falar no preconceito incutido nessas pessoas, geralmente levadas a criticar algumas linhas da narrativa por um viés religioso. Em um núcleo da citada novela, temos a personagem Bibi, vivida pela atriz Juliana Paes, e baseada numa pessoa real. Bibi é uma mulher que teve um romance com um homem de família rica, cheio de sonhos e trabalhador, que precisava estudar para percorrer um caminho de maior sucesso profissional, e que acabou por se desviar desse romance. Isso fez com que ela se apaixonasse por outro homem. Esse, pobre, mas cheio de vontade de fazer algo pela família, que também busca vencer na vida, mas acaba se envolvendo com o tráfico de entorpecentes ilegais. Bibi, por estar apaixonada, o acompanha e até o ajuda. A queda dela para o crime vai se dando aos poucos, e por vários motivos. Um desenvolvimento de personagem interessante e bem pouco explorado em novelas, que geralmente tem personagens apáticos que empurram a trama sem se desenvolver de fato. Bibi parece se esforçar para se convencer de que o que ela faz não é exatamente crime, mas algo pelo bem de sua família. No entanto, em algumas cenas, ela parece se divertir naquele mundo, o que faz com ela o aceite como uma forma normal de vida. As críticas sobre a personagem provêm de pessoas que contestam a trama a acusando de apologia à criminalidade, e eu nem vou entrar no aspecto do preconceito com LGBT (isso deixarei para outra postagem). Ora, será que essas pessoas sabem o significado da palavra “apologia”? Pois bem, para aqueles que se dispuseram a ler até aqui, vou adiantar e poupar de uma olhada no Google.
Apologia é um discurso ou texto em que se defende, justifica ou elogia algo ou alguém. Ou seja, é um texto de apoio. Por exemplo, quando você elogia certa pessoa, homenageia essa pessoa através de um discurso, você faz apologia ao que aquela pessoa fez. Lembre-se da homenagem de certo político a um militar em um momento da política brasileira, por exemplo. Quando ele citou aquele militar, ele elogiou seus atos, portanto, fazendo apologia a eles. Entenderam? Mas vejam bem, elogiar a pessoa é uma coisa. Quando se elogia a obra de uma pessoa, é outra totalmente diferente. Você não está apoiando o que está contido na obra e nem apoiando atitudes de quem fez a obra como ser humano. Você elogia uma obra como a obra que é. Se ela consegue seu intuito, se ela é coerente com o que expõe. Isso são aspectos técnicos de uma visão crítica. Para isso, você tem que conhecer aquele meio e a linguagem ali exposta. Dizer que gostou ou que não gostou não é um ato crítico, é apenas opinião.
Um outro fato polêmico envolve o fechamento do “Queermuseu”, no Rio Grande do Sul. As pessoas disseram que as artes ali expostas fazem apologia à pedofilia e zoofilia, por exemplo.
A Arte só pode ser considerada uma apologia quando ela elogia certa atitude, certo? Estão entendendo até aqui? Quando você vê uma foto de um homem “currando” uma cabra e sente repulsa por aquela foto, você acha que essa foto está elogiando o ato do homem? Pois bem, estou aqui a explicar da forma mais inteligível possível que a sua leitura pode estar sendo apenas superficial, e que você talvez não seja capaz de fazer uma análise mais profunda da obra, pois sei que muitos desses que se disseram “chocados” são incapazes da saber fazer uma leitura mínima além do óbvio. Não entendem simbologias, nem sequer sabem o que é Semiótica. Você, que se diz chocado com alguma obra artística já imaginou que a maioria critica, através de simbologias, o que você diz que é “apologia”? Vejam esta imagem abaixo:

Ela é de um artista chamado Erik Ravelo, cubano. Ela te faz pensar ou te faz apenas se sentir mal pelo cunho aparentemente religioso? Vou deixar essa para vocês mesmos se questionarem. E essa é uma obra bem fácil de se fazer uma análise.
Pois bem, na novela, não vemos uma “apologia” à criminalidade. Vemos uma das muitas formas de uma pessoa que, aparentemente boa como ser humano, mergulha no mundo do crime. Ou seja, é apenas uma história. E toda história merece ser contada, seja ela repugnante, chocante, ou não. Se assim não fosse, não teríamos filmes como "O gângster", "Irreversível", "Scarface" ou "Cidade de Deus". A mesma coisa pode se dizer das obras expostas no “Queermuseu”. Elas estão ali para que aqueles que têm maior senso crítico, e por isso, maior capacidade de visão de cada espectro do ser humano, tenham a oportunidade de discutir questões que geralmente são ignoradas por boa parte das pessoas, ou por incapacidade de aceitar que certas coisas existem ou por simples preguiça de pensar a respeito. Por isso, a censura é algo repugnante. Deve, sim, haver o controle dos responsáveis para que públicos mais jovens não tenham acesso a conteúdos que podem influenciar na construção psicológica do ser humano que está se desenvolvendo. No entanto, você como adulto deve aceitar que certas coisas que a princípio parecem repugnantes servem como o estopim para se discutir sobre os aspectos apresentados.
Vamos a mais um exemplo: a série “13 reasons why”, da netflix, pode ser extremamente perigosa para um público muito jovem, pois glamouriza o suicídio. Leia bem os sinais do que estou falando: glamourizar ainda não é “fazer apologia”. É deixar a coisa atraente, de forma que, mesmo sendo algo absolutamente ruim, o ato do suicídio seja um ato catártico, onde a personagem principal, bela e jovem, com a vida pela frente, mas com tendências depressivas, consegue despertar a apatia (ou no mínimo a atenção) daqueles que a rodearam pelo fato de ter se suicidado. Ora, essa série poderia ser considerada ofensiva, pois ela meio que acende um pavio em muitos jovens que passam por situações semelhantes às que a protagonista passou. Por isso, ela não pode ser aconselhável a esse público, mas serve para levantar uma discussão sobre a depressão e sobre o próprio ato de se suicidar. Apesar de outras obras fazerem isso de uma forma bem melhor e com um conteúdo de muito mais qualidade (mas aqui eu já entraria nos aspectos técnicos da obra).
Entenderam o que é "apologia"? Mostrar algo numa arte não é isso. Se você acha que o simples ato de mostrar torna-se uma apologia ao que está sendo mostrado, você está ignorando coisas realmente importantes numa obra artística, que é a leitura das camadas. Se você acha que arte tem que ser algo belo, você é apenas um alienado que vive (ou quer viver) um mundo de fantasia. Se você se ofende, procure discutir a respeito, pois ofensas não se retrucam com censura.
Você querer fechar um museu porque acha que as obras expostas ali ferem a sua sensibilidade é algo extremamente perigoso. A apatia intelectual cria somente escravos, e esses escravos trabalham não para a manutenção da “moral e dos bons costumes”, mas para manter grupos no poder, grupos esses que parecem trabalhar para você, mas que na verdade trabalham apenas para que o sistema não mude. Então aqui vai um conselho: se você não gosta de algo, ou se algo te ofende, não veja. Mude de canal. Assista à TV Cultura. Vá ao museu de Arte Contemporânea (pelo menos lá você não vai entender metade do que está exposto). Não faça a política do “não gostei, não quero que ninguém veja”. Isso já aconteceu antes, com queima de livros e tudo.

Um abraço e até a próxima.

Roberto Dias

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