Midsommar e o expurgo da solidão
No documentário "O Começo da Vida", uma fala de uma das entrevistadas me chamou a atenção. Ela dizia algo sobre como é duro ter uma criança e criar uma criança. Sobre como todos deveriam se unir para a criação dessa criança, pra que ela se sentisse incluída de fato na sociedade.
Certa vez, eu ouvi alguém falando sobre um programa de TV em que uma mulher de uma tribo africana era colocada pra conviver numa cidade grande com as pessoas daquela cidade (se alguém souber o nome desse programa, me ajuda aí). Em certo momento do programa, essa mulher da tribo africana passa por um morador de rua. Intrigada sobre como aquela pessoa era um tanto diferente das outras, ela resolveu perguntar à tradutora o que aquele homem fazia ali. A tradutora tentou explicar, mas sentiu que a mulher não entendia o que ela queria dizer. Mais tarde, a mulher disse ter compreendido, mas o que ela não compreendia era o fato de que alguém que pertence àquela sociedade estivesse tão isolado, tão solitário. Como ele poderia estar assim no meio das pessoas? Por que não faziam algo a respeito? Eram os questionamentos da mulher. Ela dizia que em sua tribo, todos tinham o cuidado com todos, pra que ninguém se sentisse isolado ou só, ou fosse excluído de alguma forma.
"Midsommar", filme de 2019 dirigido por Ari Aster, foi lançado como um filme de terror de um dos grandes novos gênios do gênero. Isso depois do que Aster fez com "Hereditário", que muitos já consideram o melhor filme de terror da década passada. Mas o diretor e roteirista decidiu enveredar por um caminho diferente. Tão diferente que muitos que estavam ansiosos pelo filme torceram os narizes. Um sentimento um tanto quanto injusto.
Eu tento, antes de assistir a um filme, me desprender de toda e qualquer expectativa (a não ser que o filme seja uma continuação de algo que a gente gosta muito). Esperar repetição é esperar comida regurgitada na boca. É sempre bom tentar não colocar na obra sua busca pelas mesmas sensações de uma outra obra. Quando você vê um filme, quer se divertir, quer sentir medo, quer rir, quer chorar. Em um filme como "Midsommar" é bem mais difícil explorar essas sensações mais primárias do ser humano. No entanto, ele é um filme reflexivo. E acredite, ele é tão reflexivo que me fez derramar algumas lágrimas. E se você não entende por quê, então vem comigo que eu vou tentar te explicar.
O que vem a seguir é cheio de spoilers do filme, portanto, esteja avisado(a).
O filme conta a história de uma garota que sofre uma grande perda e, junto do namorado e outros amigos, fazem uma viagem a um vilarejo isolado na Suécia a fim de participar de uma comemoração ao solstício de verão do lugar.
O primeiro frame do filme é uma espécie de quadro com os momentos do filme, que também refletem os sentimentos da protagonista, Dani (Florence Pugh).
O filme abre com uma imagem de uma floresta próxima a alguma grande cidade. Podemos observar que a floresta quase não se movimenta. É fria. Escura. Aterradora.
Essa cena de abertura se associa com as sensações que Dani está tendo naquele momento. Demonstra um pouco da escuridão pela qual ela está passando. No entanto, Dani não faz muito para sair do que se encontra. Ela está parada, como as árvores mostradas na abertura do filme. Quase em estado de depressão, Dani se apoia no namorado, Christian (Jack Reynor), após sofrer uma chocante tragédia familiar, que é mostrada bem no início do filme. Christian, por sua vez, está pensando em terminar com Dani há mais de um ano, o que é incentivado por seus amigos, Josh, Pelle e, principalmente, Mark (William Jackson Harper, Vilhelm Blomgren e Will Poulter, respectivamente), porém, ele não o faz por medo do que pode acontecer. E após a tragédia, fica mais difícil ainda, pois ele era tudo o que Dani tinha naquele momento.
Christian é a figura do homem que quer mais curtir a juventude que experimentar a responsabilidade de um relacionamento. Está querendo se ver livre do fardo que considera o namoro. E Dani sabe disso, e por isso chega a se humilhar apenas para estar junto do rapaz.
Josh é um estudante de faculdade que vai fazer a viagem para escrever sua tese de graduação.
Mark é o típico jovem que parece não querer sair da adolescência. Quer pegar todas as mulheres que puder. Sempre reclama quando Christian se submete a qualquer necessidade de Dani.
Pelle é o rapaz sueco que convidou os amigos para a viagem, pois o vilarejo é o lugar onde nasceu.
Dani sempre se sente culpada pelo peso que pensa ser, e Christian colabora pra isso. Em uma cena, ele a culpa por ter uma irmã problemática. Ela não só é vista como uma pessoa que frequentemente se vitimiza. Ela se torna uma vítima incapaz de reagir aos percalços que se colocam em sua frente, deixando que estes a aprisionem.
No filme, frequentemente, vemos a figura do urso. A primeira vez, ele aparece em um quadro em cima da personagem principal.
Em algumas lendas nórdicas, o urso é visto como a reencarnação de grandes guerreiros. Estes vestiam a pele dos ursos a fim de sentir a sua força. O quadro mostra uma garotinha que beija esse guerreiro, e este toma uma posição passiva diante da menina. Ela se sente tão livre que sabe que pode beijar o urso e seguir a sua vida. No entanto, Dani está presa e não consegue se livrar de sua prisão: a dor e o sofrimento de sentir solitária. Isolada.
Em Haagar, o vilarejo sueco, os amigos experimentam um tipo de droga alucinógena logo que chegam ao local. Nesse momento, tudo está em movimento. Bem diferente da abertura do filme. As árvores, a grama, as pessoas. O movimento de câmera faz uma leve ondulação como que indicando a fluidez do ar no lugar. Dani, pela primeira vez, se sente integrada a algo, à própria natureza, se sentindo parte dela. Mas ao invés de se sentir bem, Dani rejeita esse sentimento. Se lembra que está a um dia de seu aniversário, uma data que sabe que Christian não se lembra, e se prende novamente à dor de sua solidão, se sentindo até mesmo alguém capaz de provocar risos histéricos naqueles que estão no lugar. Ela adormece distante dos companheiros de viagem, com a finalidade de sofrer sozinha.
Durante a demonstração do lugar, Josh observa que o ritual parece ser igual ao culto realizado pelos devotos de Krishna. Ou seja, algo que permeia o nosso mundo, e nós, com nossos próprios rituais cristãos ocidentais, nem percebemos.
Durante a etapa de apresentação de personagens, conhecemos Pelle, o rapaz proveniente de Haarga que convida os amigos a presenciar o ritual de seu vilarejo. Ele é sempre doce e gentil com Dani. Ela parece sempre fugir ou evitar as investidas de Pelle. No início, ele tenta demonstrar ser empático com a garota dizendo também ter passado por algo semelhante e perdido os pais ainda na infância, tendo sido acolhido pelas pessoas de Haarga.
Sabemos, então, que aquele ritual sagrado acontece a cada 90 anos, e é um ritual para agradar o deus sol e dar uma boa colheita àquele povo nos anos vindouros. Certamente, ao vermos o final do filme, poderíamos entender que os pais de Pelle não foram vítimas de uma tragédia, mas sim do sacrifício exigido no ritual, mas como esse ritual só acontece a cada 90 anos, seria impossível que os pais de Pelle tivessem sido mortos nessas condições. Podemos inferir, então, que realmente Pelle perdeu os pais numa tragédia.
No lugar, as crianças recém-nascidas são estimuladas a ficar longe de suas mães, a fim de que elas aprendam desde cedo a se desapegarem. Mas esse desapego não diz respeito exatamente à condição de mãe e cria. Durante os momentos no barracão onde os personagens dormem, podemos ouvir frequentemente uma criança pequena chorando por falta da mãe. Porém, a intenção é tornar a criança mais forte e tentar ensinar a ela que a vida em comunidade é muito mais importante que a vida de um indivíduo.
Aliás, a noção de comunidade é levada ao extremo na cena dos primeiros sacrifícios. Os anciãos se sacrificam por vontade própria, entendendo que seu ciclo chegou ao fim. Quando um deles, ao tentar se sacrificar, se machuca gravemente e não morre, todos os membros da comunidade começam a gritar. Percebemos que a empatia que aquelas pessoas demonstram é tanta ao ponto de "sentirem" a dor do outro. Nesse momento, vemos uma das cenas mais chocantes do filme: o sacrifício é completado com o uso de uma marreta. Após a cabeça do ancião ser completamente esmagada, os membros da comunidade param de gritar. Enquanto isso, os convidados assistem atônitos àquela cena bizarra. Dois deles se desesperam completamente: Connie (Ellora Torchia) e Simon (Archie Madekwe), que foram convidados a assistir ao ritual por outro integrante do vilarejo. Eles dois representam a plateia no filme. A maioria de nós reagiria como eles. Os convidados de Pelle reagem com um pouco mais de compreensão daquele mundo. Dani questiona tudo aquilo e até sente uma imensa vontade de ir embora, mas é convencida por Pelle a ficar. Quanto a Josh e Christian, os mesmos tem uma curiosidade mórbida sobre aquelas pessoas. Mark continua apenas querendo fazer sexo com alguma mulher do local. Ele não acompanha o ritual do sacrifício e desrespeita até mesmo os ancestrais do lugar.
O momento em que Pelle convence Dani a ficar no local representa o início da mudança de Dani. Ela sabe que está sozinha. Se sente sozinha. Pra chorar, ela sempre se esconde, com medo de se tornar um peso, e precisa aprender a se livrar do que a prende. Quando ela percebe que Christian de fato esqueceu seu aniversário, ela parece não querer mais que ele se importe com isso.
Após os primeiros sacrifícios, podemos perceber que o ritual se trata disso: sacrifícios e concepção. Para que a natureza sirva àquela comunidade, tem de haver o sacrifício e a concepção. E para essa concepção, alguém deve ser o guerreiro. Esse guerreiro é representado pelo urso. Uma figura que Christian observa antes do momento da concepção.
Os outros personagens são o sacrifício. Alguns por serem impertinentes aos rituais do local, outros por não aceitarem, mas Christian é escolhido o guerreiro e fará parte ativa do ritual para a concepção daquele ou daquela que substituirá os anciãos que se sacrificaram. Para isso, ele é estimulado a praticar o ato sexual, mesmo que, aparentemente, contra a sua vontade, o que denota que Christian não queria exatamente trair Dani. Enquanto isso, no ritual da Rainha de Maio, Dani é estimulada a ser forte. A reagir. Algo que ela nunca imaginaria ser. Após ganhar o concurso de Rainha de maio, ela é ovacionada por todas aquelas pessoas que ela não conhece. Enquanto isso, Christian pratica o ato sexual com a garota que o escolheu, tendo as bênçãos de todas as pessoas do local. Dani vê aquilo, o que provoca nela profundo sentimento de náusea e tristeza, quase desespero. É nesse momento que Dani vê por quê se sentia sozinha. Ela enxerga naquele ato todo o peso que a prende, e ao chorar desesperadamente na frente daquelas moças que a acompanhavam, o que ela vê de volta? Empatia. Sim. Assim como os membros daquela comunidade reagiram com gritos de dor quando o ancião se feriu sem morrer, as meninas gritaram o choro de Dani. E qual o momento que a maioria das pessoas se sente mais sozinha no mundo? O momento em que se sentem traídas por aquelas pessoas que elas mais amam. Mas ao invés de esconder a dor e o choro, ela deixou que seus sentimentos explodissem para todos ao seu redor. Dani então renasce como um verdadeiro jardim, escolhendo o guerreiro pra ser o último sacrifício do ritual. Christian é vestido na pele do urso e é colocado para sacrifício ao lado de seus amigos que já estavam mortos. Com eles, além dos anciãos, mais duas pessoas da comunidade haviam se apresentado para se sacrificar.
Todos eles são queimados. Um deles começa a gritar de dor pelas chamas que o consomem. Toda a comunidade também começa a gritar de dor, a pular e a espernear, como se todos estivessem sendo consumidos pelo fogo.
Enquanto isso, Dani até tenta sentir empatia pela dor do outro, mas ela apenas sorri, e aquele foi o único sorriso verdadeiro que ela deu em toda a trama, pois, naquele momento, ela se livrara de sua prisão, e assim, ela sabia que não estava mais sozinha num mundo de dor e sofrimento.
O filme pode muito bem ser visto da forma que você, espectador, quer vê-lo, mas pra mim, "Midsommar" não é um filme de terror sobre um ritual bizarro. Pra mim, ele é um drama sobre alguém que encontrou seu lugar no mundo depois de sofrer com a solidão, mesmo estando ao lado de outras pessoas que diziam amá-la apenas por dizer.
Por Bob Dias
Um abraço e até a próxima.
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